Há uma foto em que eu estou com seis, sete anos, em que eu olho o meu pai, que era muito alto, de baixo para cima, de mãos dadas. Há nessa foto um desassombro. Eu olho para cima completamente embevecido. Eu olho para cima, e nesse gesto há um reconhecimento completo de que sou devoto àquela pessoa. Sempre fui. Nada mudou. E parece nessa foto que estou à procura do olhar dele. E na foto não aparece o que o meu pai me devolvia sempre que olhava para ele. Faço a pergunta. Quando olhavam para ele? O que vos devolvia? Gentileza? Candura? Respeito?
Há dois meses, por telefone, para me parar o choro que chorei por um devaneio de que o meu pai pudesse estar morto, ele disse-me "Está tudo bem", e como não parava, "Tens a vida pela frente, porque és bom".Estranhei na altura a ligação que o meu pai fez entre ter a vida pela frente e tê-la pela frente por ser bom. Foi de imediato, sem reflectir, que ele o disse. Terá a ver com achar que só tem a vida pela frente quem é bom? Ou que só vive de facto quem é bom? Ou será ainda que tinha simplesmente que ver com querer dizer duas coisas distintas que lhe apareceram na mesma altura, que tinha a vida pela frente e que eu era bom, sem ligação aparente. Eu acredito que o meu pai fez aqui poesia, ele que não era da poesia. Será que não era? Há um célebre poema que diz "A poesia está na rua", o meu pai, estou em crer, alteraria para "A poesia está na cura". E para curar é preciso estudar muito, ser persistente, insistir muito, nunca desistir, nada, em nada, a ver com o fogacho de inspiração que leva a escrever a outra frase. E talvez por isso o meu pai não fosse o que se chama um poeta.
O corpo que aqui está está morto. O corpo do meu pai está morto. Não admira que tenha os olhos fechados. Não são eles o espelho da alma? Mas estará de facto o meu pai morto? Onde estará o meu pai? A alma? O meu pai está vivo em todos vós. O meu pai está vivo nos que o lembram. O meu pai está nos que têm a vida pela frente, quando são bons, porque são bons. Sejam bons. E aí e só então aí e nunca senão então estará o meu pai vivo. Se o quiserem sentir vivo: sejam bons. Se quiserem lembrá-lo: sejam bons. Se quiserem procurar o conselho dele: procurem o que em vocês existe de bom. Sejam bons. Foi o que o meu pai foi: um bom médico, um bom filho, um bom irmão, um bom marido, um bom pai, uma boa pessoa. Foi bom, pai, ter-te connosco. Tens a paz dos justos.
Tens a eternidade pela frente, porque foste bom.
Maravilhoso.
ResponderEliminarQue privilégio ter assistido à leitura ao vivo. Não poderia ter havido mais bonita e sincera homenagem ao teu pai.
ResponderEliminarQue linda homenagem ... Tocou-me profundamente.
ResponderEliminarMaravilhoso. Tiago. Um. Grande beij Fátima
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