Um Homem Tranquilo - John Ford
É muito estranho que este filme tenha sido feito. E é estranho não porque é antigo, não porque é datado, o filme não tem um senão: é tão estranho assim porque nos afastámos tanto de um mundo em que filmes destes existam e sejam feitos e também porque não parece o seguimento da História. Seja do cinema, seja dos costumes, seja do que for que este mundo é e que este representado no filme não tem.
O antónimo de mundo é imundo. E neste filme é tão claro que este do filme é um verdadeiro mundo, impoluto, casto mesmo no vício e na errância.
O filme começa por um homem regredido à infância. E volta a casa. E depois eles vêem-se.
Mary Kate precisa de um homem, um lar, filhos para estar completa. Sean precisa do mesmo e, assim que chega, Sean compra uma casa, e, assim que chega, vê a mulher que irá ser a mulher da sua vida, mãe dos seus filhos. Sean pensa que está tudo feito. Mary Kate sabe bem que não é assim. O que se segue a isto é todo um desenrolar de atribulações que eles precisam de passar para que o amor dos dois seja digno, respeitado. Por quem? Pela família e pelos amigos, pelo pároco e pelo vícaro, pelos novos e pelos velhos, pelos vivos e pelos mortos. Por todos os que de alguma tocam na vida desta comunidade.
Mary Kate não tem nada, mas tem tudo. Sean tem tudo, mas não tem nada. Mary Kate é a promessa de vida. De um renascer. Mary Kate é terra fértil. Toda a paisagem é fértil. Sean só tem o corpo, com que matou e com que agora promete trabalhar a terra. E nisto não sabe quão impuras são as suas mãos: mãos que serviram para matar, servem agora para lavrar, construir, amar. São as mesmas mãos. Mãos que tiram vida são as que agora podem dar vida. É a dualidade da agressividade. Sean confunde agressividade com violência. Mary Kate não deixa. A comunidade não deixa. Toda a acção é agressividade, mas não é necessariamente violenta. Leia-se:
“A palavra "agressividade" tem sua origem no latim "aggressivus", que por sua vez deriva do verbo "aggredi", que significa "atacar", "avançar". O prefixo "ad-" indica uma direção ou movimento em direção a algo, e o verbo "gredi" significa "caminhar" ou "avançar". Portanto, "aggressivus" pode ser traduzido como "que avança", "que ataca".”
Não podemos escolher não avançar. É a nossa morte em vida. Violência tem como verbo violentar. Violentar é profanar. Ser agressivo, por vezes, parece-se com violentar, embora um seja por vezes consequência do outro, não são o mesmo, e quando o “gredi” é indiscutivelmente usar da força, quando é justo e é o único modo, então nada é profanado. Como acontece no filme. E Sean reaprende isso. Se é que alguma vez o tinha percebido.
É o mais belo filme sobre a comunidade.
O filme tem também um pequeno milagre. O beijo mais bonito da história do cinema, sem qualquer tipo de exagero.
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