Carta de José Maria À Sua Amada Joana


     Inspirado pelo heterónimo Maria José, de Fernando Pessoa, que tem única expressão numa carta ao seu amado António, escrevi eu uma carta de um tal de louco José Maria à sua amada Joana, imaginado por mim.

        " Senhora Joana,

Quero que saiba que sei já de antemão o que possa pensar - não foi por si que o soube, que sei não ter maldade nenhuma - e que apesar de querê-lo com todas forças, por um momento, estar perto de si, não tentarei sequer falar-lhe. Pois que devo ter ensandecido mais. Lá em casa toda a gente diz que sou tonto. Que não tenho tino. Que sonho o impossível. E o sentido que têm eles nisto é certo, mas não gosto. Aos olhos deles sou tonto e sem tino e só sonho só agora, e isso sim me aflige, porque em nada mudei. Sendo ainda mais assim que agora a tudo isto se junta medo. Medo de que vá falar à senhora.

Quero dizer à senhora Joana quem sou, sem lho dizer, porque nunca saberá quem sou, porque a isso precisaria de juntar uma cara, uma presença, uma voz, e isso nunca vai ver de mim. Sou José Maria, talvez já me tenha visto a pedir esmola nesta cidade, mas a si já não, nunca pedi! Peço dinheiro porque não tenho ocupação e não tenho ocupação porque sou infeliz, quem diga que louco. Quando vejo passar a senhora, julgo que a caminho do trabalho dada a hora, parece, suscita a minha imaginação, que tem um tapete estendido que se vai adiantando à medida que passa, e só a senhora o pisa, porque só a senhora é quem é. E o que a senhora é é bom de ser. Ignoro o que outros possam ver na senhora Joana, porque a muita gente interessa só as futilidades da vida porque há quem ache tão certo que a Brigitte Bardot, que é loira como a senhora, possa ser tão bonita quanto a senhora, mas eu da senhora sei que é boa gente, da Brigitte Bardot não sei ser boa gente e também eles não sabem, e porque é justamente o que vejo, que a senhora é boa gente, e que ser tão bonita, como é, é tão só consequência de ser tão boa gente. E em tudo isto sou diferente de muita gente.

O meu médico de cabeça diz que estou quase curado, mas que faltam inda muitos anos para que esteja curado, e que só estarei quando deitado, num caixão e sepultado, e por aqui pode ver que cura tenho. Nunca acreditei nos comprimidos que me dão para curar o que tinha de mal na cabeça, porque do pouco que sei, nada com aquele formato e sem sabor e sem engenho, me daria o conforto na alma que precisaria de ter para que o tormento que me assola acalmasse. Mas queria, se algum dia pudesse falar-lhe, e que ao lhe falar dissesse o que lhe queria dizer, então diria que desde que a vejo que os tomo, aos comprimidos e que o faço por si, por não querer ser mais louco. Que sejam a cura já não acredito tão pouco não ser, porque quando os tomo, julgo que porque os tomo possa vir a ser possível ter um banho tomado, os dentes ressomados e brancos, uma casa a que ir, a alma no sítio, e também que de si possa ter alguma estima, que nem seja a de amigo. Não se preocupe, porque não sou tão louco assim que lhe vá falar, também porque os dentes retintos estão, o banho é o da fonte que às vezes julgo ficar mais porco que o que já estou, a casa é de pano e a estima que possa vir a ter de si, não me tire essa esperança porque é de gente ter esperança e se ainda o sou é porque a tenho.

Nem sempre fui louco, há quem diga que sempre nasce connosco, mas não é assim para mim, que julgo que é da vida. E também porque nem sempre foi assim tão claro que era louco. A senhora não acreditaria na idade que tenho, mas julgo ter cerca de vinte e cinco, que ninguém mos dá, porque sou velho na cara que tenho e porque já lhe perdi a conta e às loucuras e o cartão de identidade e à identidade. Parece que foi há muito tempo, mas estudei na Universidade, um primeiro ano dela, e sempre fui das Letras e por isso sei escrever e lembrar, porque escrever é lembrar e lembrar é escrever, mas desse tempo da Universidade lembro só que estive lá sem lembrar que o estive. Tive mãe e pai mas mais valia que não os tivesse tido. Se cresci como sou, foi apesar deles, se boas coisas aprendi da vida, não foi deles que as aprendi, e por isso sempre disse de mim que eu sou sozinho.

Pois que quando a vi tudo isto se me desabou, tudo o que em mim era certo se espantou, e julgo ser possível ser feliz, quando é tão ainda na mesma uma impossibilidade, porque se apaixonado estou, e mais perto da felicidade estaria, mais ainda seria preciso somar-lhe o impossível, que não tem realidade nem expressão.

No outro dia, o Chico da Estrebaria, assim lhe chamo porque é porco e porque o é por sê-lo de maneiras e de limpezas para com ele, disse que a senhora Joana lhe falou mais do que cinco minutos e que lhe deu cinco euros, e nesse dia senti inveja a valer. Cinco minutos que o Chico usou para que lhe desse uns dinheiros para comprar remédios na farmácia, de que ele disse precisar, mas saiba que é tudo mentira, porque o mal dele é o vinho que não larga, e que a receita que ele mostra é a minha, que avio eu de quando em quando sem precisar de dinheiro que é gratuita.

Não tinha como saber e estou em crer que mesmo que soubesse não saberia, porque não é de si desconfiar em quem lhe apresenta uma coisa como sendo de verdade, mais ainda quando se trata da tristeza de alguém, neste caso a minha, que é para mim que é aviada, a tristeza e a receita. O Chico disse que os olhos da senhora são azuis, e acreditei, mas depois que não sei já se são, pois que pode ter dito para aumentar o que estou a perder dele, e ele que é mau. Fez pensar, no entanto, que se por si fosse visto, seria a minha perdição, porque olharia a senhora nos olhos, e aí estava bom para morrer.

Ainda disto tenho a dizer-lhe que no dia em que ele mo contou, eu fiz por não comer e juntar dinheiro, e quando o juntei, troquei por uma nota, e no dia seguinte, quando a senhora ia ao trabalho a passar, gritei que deixou caí-la, à nota do bolso, ao que a senhora estranhou mas que levou e que me agradeceu, dizendo "Obrigada!", ao que eu disse que não tinha de quê, e esse foi o único momento em que falámos, ainda que ao longe, ainda que não lhe tenha visto os olhos, que acredito serem azuis. Que esteja agradecida de mim e que não saiba o quão mais eu estou de si, entristece-me, mas não pode ser de outro modo, pois seria preciso somar ao que temos os dois o impossível, que não tem como acontecer, porque não tem realidade nem expressão.

Quero que saiba que na minha loucura acontece que eu sinto coisas que não têm raiz na realidade, que por isso num dia posso achar que coisas impossíveis possam acontecer, e que tendo-me visto ao espelho, louco, depois de um bom banho, e a achar que os meus dentes não estavam assim tão sujos que estão, e que a minha roupa que tinha achado, que é agora a minha melhor roupa, era bonita de se ver até por si, que a minha casa que é de pano pouco lhe importava, pois ter-nos-íamos um ao outro, aconteceu eu querer ir falar à senhora e declarar-me, que não fui, que ir não é como pensar. Aconteceu, sim, que acometeu-se-me a sobriedade num repente e que reparei em mim.

Que loucura o que aqui escrevi. Claro que não verá esta carta. Acabei de tomar cinco dos comprimidos que me dão, para matar qualquer loucura que pudesse voltar a ter.

Eu amo a senhora com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou a chorar.

José Maria
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