As Gorduras Que Nos Chegam

   

    Parecia-me que o voto no Chega era volátil. Não é. O voto no PSD e no PS é volátil. E isto preocupa e deve preocupar.          O voto no Chega é um voto de ódio, que se compraz na figura do Ventura. De ódio para quem ele se dirige, não nas outras em que ele eventualmente pode também bater. Pensem nisto, se uma besta primeira estiver a bater numa besta segunda que nos está a bater, embora não tenhamos de gostar da primeira besta, ajuda-nos que esteja a bater na segunda besta. A primeira besta é a besta do Ventura. A segunda besta, a que está a bater nestes votantes do Chega, que lhes faz dói-dói são: a esquerda e a direita que está instalada nos lugares de chefia há tanto tempo, que não transmite nem altera as estruturas de poder; quem ataca com impostos os que por razão própria querem viver com menos freios; são quem é indiferente politicamente à questão da intolerância às cores da pele de qualquer povo a certas cores, nada nisso é exclusivo do povo português; são os intelectuais de bancada quando os outros estão a jogar à bola; são os que não sabem que o discurso mudou e que a sua música já não toca na cabeça de tantos; são os que não se adaptam aos tempos em que a discussão azedou e já não há razão na discussão e a violência se instalou, tanto na discussão como nas nossas vidas; são os que falam do problema da habitação como um problema mas não vêem problema de facto; são os que dizem trabalhar sem trabalhar.

    Sabemos uma coisa: em muitos há o impulso de agir como um carneiro. O carneiro vai para onde outro quer. Sabemos então que muitos destes que estão a ir por ali, iriam por outro caminho, houvesse outro timoneiro. Qual é o problema? O problema é que ninguém está a resolver os problemas que atacam esses carneiros, o lobo imaginário, e este outro lobo, o Ventura, protege-os, leva-os a crer. O lobo imaginário que ataca esta gente é a desvirtuação de todo um imaginário português, de toda uma paisagem, de toda uma língua, da identidade. Sabe alguém inteligente que isto acontece porque é a direcção que o mundo está a tomar e não por imposição de ninguém português. Está a acontecer que o mundo é cada vez menos dos locais, do comum, do senso e cada vez mais de ninguém, do vazio e da insensatez. Que há um ataque às coisas com que os locais se identificam em prol de uma coisa desidentificadora, de sítio nenhum.     Alguém entenderia há tão pouco tempo:     Que aconteça que edifícios inteiros possam existir sem ninguém dentro que os habite?          Que línguas sejam tão faladas por nós sem terem sido tão faladas por nós na nossa infância?     Que coisas tão simples como o que faz alguém ser homem e uma mulher ser uma mulher fosse uma questão de ponderação e não imediata?     Que pessoas sejam tão presentes e no entanto tão distantes?     Que desgraças tão longe aconteçam tão perto?     Que tudo nos seja tão alheio e no entanto tão vendido como nosso?     Que o plástico tão desvirtuoso nos faça tudo o que é preciso?     Que a comida que nos chega ao prato esteja tão longe da morte necessária para ela nos chegar?     Que o trabalho seja tão pouco físico e que a renumeração também?     O lobo Ventura não os defende de nada disto, não faz por contrariar isto, mas grita "Portugal, Portugal!" e a carneirada nisto ouve o que quer ouvir, ouve disto que este lobo os defende e segue-o. Rumo ao abismo.     

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