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A mostrar mensagens de agosto, 2024

Lave

A palavra amor deve ser usada com parcimónia. A palavra love deve ser igualmente usada com parcimónia. Não devemos achar que por estar mascarada a palavra de estrangeirismo que mereça menos. Até porque em inglês até parece uma ordem. Foi assim que vi plasmada numa parede com passarinhos por cima e em tom de rosa a palavra love num bar. Coisa que muito me chateou. Até porque naquele momento o que mais me apetecia era odiar. Odiar a pessoa que teve a ideia de fazer aquilo. Porque é reservado à pessoa a altura em que ama, em que desama, porque essas alturas são delas, e ninguém tem dúvidas de que é bom amar, mas sem dúvida que quem ama sabe reservar para si momentos em que desama. Só a pessoa que tem noção do comum sabe o que tem de extraordinário um milagre. O ordinário não é amar. É muita coisa, mas não é amar. Vai mandar amar a tua tia.

Cigarros

Num cigarro temos todos os condimentos para uma boa vida. Controlamos quando morremos um pouco. Controlamos, claro, freando a morte contida num cigarro, quando vivemos. Só sei viver com este travão.      

Músicas Que Marcam o Passo

Às vezes, vivo à boleia de uma música durante dias, semanas. Às vezes é uma rapariga que ma traz, às vezes é alguma coisa de nada. Há aquelas músicas de sempre que nunca enjoam. Mas! As músicas que marcam o passo têm outra coisa. Quando as descobrimos ainda não sabemos que o são. E quando o são tornam o acordar mais fácil. Tudo mais fácil. Às vezes sonho quando oiço uma música assim que o mundo a vive comigo por osmose. Benditos phones, invenção maravilhosa. Quantos de nós vêem no passo de uma rapariga uma jinga diferente porque estão a ouvir a Rock & Roll dos Velvet Underground quando o sol brilha e o autocarro nos leva a um sítio inevitavelmente longe de para onde queremos ir? Estamos numa praia qualquer de azul e amarelo. E esperar pela noite, como esperei, para ouvi-la novamente, à música. E escrever certo de que tudo isto é passageiro. E de que é bom que o seja. Porque é bom porque o é.     Às vezes apetece-me engolir o mundo, tal é a voracidade.

Se uma formiga falasse

A minha casa de agora mais parece no topo de uma montanha. E não é que é? Lisboa tem montanhas? São montanhas as montanhas de Lisboa? Então vivo numa montanha.  Vivo numa casa numa montanha cercada de árvores. E não é que vivo? Lisboa tem montanhas com árvores? São árvores as árvores de Lisboa? Então vivo numa montanha com árvores.  E nessa montanha respiro como nunca respirei porque o vento entra-me pela boca adentro. Lisboa tem vento? É vento o vento de Lisboa? Então respiro como nunca respirei. Volto ao que me trouxe aqui. (Lá fora as árvores resfolegam). TInha um amigo de infância mudo. No silêncio a que me acostumava, havia qualquer coisa de inquietante e de inquieto. Um insecto mudo. Uma formiga muda. Que pára. Não, a formiga nunca pára. Mas se parasse. Se parasse e olhasse para mim. Então eu no aspecto dela encontraria o que me inquietasse.  E a mudez dela eu tomo-a como certa. Mas se falasse. Mas se nunca antes tivesse falado. Mas que pudesse falar. Então essa formiga seria com

  Li numa crónica de Bénard da Costa uma ideia que me ficou demasiado redonda na cabeça e demasiado simples: a de que Deus é terrível por ser tão pouco humanamente entendível, foi assim tão pouco complexa que me ficou na cabeça. O texto era um pouco mais do que isto. Havia ainda outra ideia, que simples me ficou, de que o sofrimento humano é muito humano, e que não encontra explicação nas razões divinas. Quis depois saber porque me pareceram estas duas ideias tão fortes. Há o óbvio chutar para canto, que é tão simples como dizer que Deus é insondável, que não se rege pelas nossas razões. E atacando Deus como terrível, defende-se também do ataque as outras qualidades que atribuímos a Deus. Como dizia a minha avó "É mau como as cobras, mas tem bom coração". O que diz isto da minha avó é que também ela atacava de quem gostava, para poder depois gostar dessa pessoa à vontade. Entrava de estalada para depois defender de fazerem mal ao atacado. E que diz isto da minha avó e de Béna

Capitalismo

Numa noite de poesia, num sítio pretensioso, alguém se levantou para dizer um poema.  Não era um poema que se esperasse.  Era A Cabritinha do Quim Barreiros. E disse.  E nada foi conseguido. Nada foi ridicularizado. Ninguém se sentiu insultado. Ninguém enfiou carapuça nenhuma.  Porque, enfim, qual ridículo? Qual insulto? Qual carapuça? Como qualquer coisa imune à subversão, incorporada a subversão no seu sistema, nada a destrói. A meio, no poema, fraquejava, mas leu-o. No fim, no refrão, foi acompanhado em uníssono pela plateia.

Uma ameixoeira de flor branca

Ser conservador ou ser coisa alguma. Ser da casa ou ser da rua.  Ser daqui ou de lado nenhum. Escolho decididamente  a ignorância de não querer saber  mais do que o que floriu no meu quintal. Escolho  decididamente  ser pela aparente fixação do olhar  do que aspirar a absorver a impermanência. Quero dizer  aos que fogem que a prisão das suas casas continua em qualquer lado. Quero dizer  aos que fogem  que a cela de portas abertas  precisa de ser destruída. E nisto tudo  há uma tristeza permanente  à porta da minha casa porque ninguém fugiu  ninguém destruiu e dizem-me que encontraram agora  chão de betão armado onde vi florir ainda há pouco  uma ameixoeira de fruto amarelo.