"Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais"

O mal destes tempos parece ser o anelar geral destas gentes para resolver a humanidade num gesto, numa vida, numa centelha.

O problema não é a estátua do Churchill (o tema não está datado) estar sei lá onde.
 
O problema não é a humanidade não estar à altura de resolver as suas contradições aqui e agora.  Não somos senão transitórios. Não tem resolução isto a não ser aceitar a transição e sermos transitórios! Não somos melhores que os nossos pais, pátrios, falhamos em não querer ser o que eles são tanto quanto nós: transitórios! Há sempre uma parte que a manta não cobre.
 
Queremos nós com a nossa erudição mudar uma língua (vede acordo ortográfico, vede modificações do género neutro).

    Deixar de lutar em guerras (Somos pela paz, mas não se encontra uma causa justa que seja? Não há nada que vos faça lutar? Não encontram guerras justas? Se há um lado injusto que guerreia, não é forçado o inocente a lutar?).

    Deixar de ir votar (São todos iguais, não é? Mas não é que a ideia encerra em si uma superioridade, certamente? Os outros que votam, votam num igual a outro? E então que seriam diferentes se fossem mais de acordo com a vossa índole? E onde está esse candidato em que tanta gente quer votar e não aparece? Lá no fundo achamos que somos nós? Somos todos tão Cristos! Vede matrix em que todos adorámos tomar as rédeas do Neo, todos quiseram viver no papel do salvador).

    Queremos nós agora julgar o pouco que se diz pelo todo (Vede tantos casos de execução pública simplesmente pelo que se diz).
 
    Para rematar porque tudo isto não pode ser, vou passar a palavra a quem o diz melhor:


"
Recentemente, entre a poeira de algumas campanhas políticas, tomou de novo relevo aquele grosseiro hábito de polemista que consiste em levar a mal a uma criatura que ela mude de partido, uma ou mais vezes, ou que se contradiga, frequentemente. A gente inferior que usa opiniões continua a empregar esse argumento como se ele fosse depreciativo. Talvez não seja tarde para estabelecer, sobre tão delicado assunto do trato intelectual, a verdadeira atitude científica.

Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.

A coerência, a convicção, a certeza, são além disso demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação. E uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é maçá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade.
Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia. Deve ter, não crenças religiosas, opiniões políticas, predilecções literárias, mas sensações religiosas, impressões políticas, impulsos de admiração literária.
   
Certos estados de alma da luz, certas atitudes da paisagem têm, sobretudo quando excessivos, o direito de exigir a quem está diante deles determinadas opiniões políticas, religiosas e artísticas, aqueles que eles insinuem, e que variarão, como é de entender, consoante esse exterior varie. O homem disciplinado e culto faz da sua sensibilidade e da sua inteligência espelhos do ambiente transitório: é republicano de manhã, e monárquico ao crepúsculo; ateu sob um sol descoberto, e católico ultramontano a certas horas de sombra e de silêncio; e não podendo admitir senão Mallarmé àqueles momentos do anoitecer citadino em que desabrocham as luzes, ele deve sentir todo o simbolismo uma invenção de louco quando, ante uma solidão de mar, ele não souber de mais do que da Odisseia.

Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais. Os que não reparam para as coisas quase que as vêem apenas para não esbarrar com elas, esses são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam dessa lenha, e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida.

    Quando é que despertaremos para a justa noção de que a política, religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética — a estética dos que ainda a não podem ter? Só quando uma humanidade livre dos preconceitos da sinceridade e coerência tiver acostumado as suas sensações a viverem independentemente, se poderá conseguir qualquer coisa de beleza, elegância e serenidade na vida.

1915

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
  - 5.

1ª publ.:”Crónica da vida que passa”. in O Jornal, nº 2. Lisboa: 5-4-1915.

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