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Sobre as nossas limitações

            Quero falar sobre o que nos é proibido. O que eu queria dizer é que nestas coisas que nos limitam as possibilidades de acção, o mais difícil de tudo é aceitar a própria limitação. Eu posso passar uma vida inteira sem comer, sei lá, avelãs, mas se me disserem que não posso comer avelãs a minha vida inteira, então só quero avelãs. E o que eu tenho a dizer é: avelãs não são assim tão boas. É a "satisfação" de comer uma coisa que me é proibida que é boa. É fome do proibido. Assim como não pode existir vida sem a possibilidade de suicídio e sem a possibilidade de morrer, não podemos viver sem a possibilidade de provarmos o proibido ou de alguma coisa nos poder ser proibida. Não podemos viver provando a morte, mas podemos prová-la uma vez. Se é que a provamos. E é engraçado... Quase toda a gente aceita essa suprema limitação, de que não podemos provar a morte e continuar vivos.   Mas já as avelãs? As pequenas coisas que nos são proibidas? São muito mais difíceis

Conto em construção (II)

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         Chegado ao quarto, tinha as cartas do tal Alexandre sobre a secretária. Pousou as malas, foi ver a revista de poesia da escola e confirmou que havia um rapaz que assinava com esse nome. Apressou-se a abrir as cartas. Na primeira que abriu estava a foto de uma bela rapariga. Dizia:           “Pedro,      Atrevo-me a escrever-te desde aqui de longe, e só assim me atrevo. Conheço de cor os teus versos. Sou uma profunda admiradora deles. Julgo conhecer de cor os teus olhos.      Vi-te no Liceu sem nunca te conseguir falar.      Sou eu Maria Alexandra Soares Paes (Alex Campos é o meu nome de pena), nascida em Lisboa, São Domingos de Benfica. Nasci temerariamente, mas boamente entrei neste mundo. Não julgo saber nada de nada. Vivo na angústia de ter de saber não sabendo. Assim me apresento a ti. Sei que sou tua. Dispõe de mim como quiseres. Alexis” Era uma rapariga que se declarava. Abriu a segunda carta onde estava escrito: “Pedro, Soube que só lerás estas cartas lá para o final

Conto em construção

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     Quando Pedro ouviu a sua voz pela primeira vez saída de si mesmo, apercebeu-se de como lhe era estranho como os outros o entendiam. Foi num gravador de voz. Cantou. E apercebeu-se de como o seu sotaque não era tão americano assim, de como a sua voz não era tão bonita assim, e não fosse ele lembrar-se exactamente do que tinha dito e de como, e pareceria outro. Depois, numa gravação de vídeo, viu o seu corpo em movimento. Percebeu que pouco controlava o que lhe era externo. E começou a perguntar-se "Quem sou eu?" e sentia um vazio. Não porque ele fosse nada, mas porque ele não era o que controlava, ele era o interno, ele era o imaterial. Uma pedra é, uma pedra é arremessada, uma pedra existe. Também ele era, também ele era arremessado, também ele existia: mas partido, não havia plenitude. E pensava muito. Tanto que a acção deixou de estar ligada intimamente ao que pensava fazer. E escrevia. Escrevia para ver de fora o que lá ia dentro. E passou a ver-se muito ao espelho,

Olivia De Havilland novamente

  Se A Herdeira é um filme brilhante, que dizer de A Minha História ( Hold Back the Dawn) ? Mais uma vez são assunto os inocentes e os injuriados. Explicar porque gosto deste filme é um pouco como explicar uma memória de grande afecto nossa. De um momento em que amámos. Por mais razão que se ponha na explicação, não é com ela que vamos lá. O afecto é indizível. E eu sinto um afecto incomensurável pela memória que tenho da Emmy Brown.   A Emmy Brown está apaixonada. A Emmy Brown só se quer casar. A Emmy Brown foi enganada a isso. E pelo meio, o facínora (o actor Charles Boyer) enobrece-se. Pelo meio, alguém muda. Alguém muda. Com o tempo, as pessoas vão-se conhecendo. Com o tempo, pouco mudam. Tornam-se resistentes à mudança. Mas há quem seja areia de praia e não rochedo. Há quem nunca se defina. Quem fique no limbo e ninguém os conhece verdadeiramente. Nem eles a si próprios. Por isso, muitos dizem que as pessoas não mudam. Mas mudam se abrirem constantemente a porta à muda

O Feitiço do Tempo (Groundhog day) e o Xadrez

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   [ TEXTO PUBLICADO NA AXL - o pedido era que falasse sobre cinema e xadrez ] Vou falar mais uma vez sobre xadrez e sobre um filme que nada tem a ver com xadrez. Aparentemente. Tenho de fazer a minha defesa. O xadrez não é simplesmente um tabuleiro com peças. Não é simplesmente saber fazer a melhor jogada. Não é simplesmente aprender com os erros. Não somos máquinas. E não é simplesmente ganhar um jogo. Gosto muito de xadrez. Apela ao meu lado competitivo. E gosto muito de cinema, sendo essa a minha grande paixão. Pediram-me um texto para publicar na AXL que se calhar não é o mais adequado. É o texto que eu tenho. Se se ajusta digam-me vocês. O filme chama-se “O Feitiço do Tempo” (“Groundhog Day”, 1993; Realização:   Harold Ramis; História: Danny Rubin; Argumento: Danny Rubin e Harold Ramis; Actores: Bill Murray, Andy MacDowell, Chris Elliot). O que acontece no filme é que o protagonista fica preso no mesmo dia. O mesmo dia parece repetir-se. As mesmas acções repetem-se da parte

Em torno de Pessoa

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     Poema que escrevi em torno de uma admirável quadra de Fernando Pessoa a propósito de um conto que estou a escrever. A quadra dele é para mim evidente qual é, visto que todo o resto do poema é uma tentativa de elevar essa quadra mais alto, só conseguindo construir um suporte que acho que não o engrandece. A quadra magnânima dele é a do moinho de café. Tudo o resto é meu, mas em torno de Pessoa, levado por ele a imaginar como poderia ele escrever outras quadras fosse não só aquela linda quadra estar sozinha. Exercício Pessoano  O alambique de aguardente Destila bagaço e faz dele ouro. O ouro líquido que não mente Que torna tudo nada duradouro.  A trituradora de tabaco   Desfaz folhas e faz dele fumo.  O fumo da memória qu’ataco  Que da treva escura exumo       O moinho de café  Mói grãos e faz deles pó.  O pó que a minh’alma é  Moeu quem me deixa só.  Absorto no Martinho da Arcada   Trago um cigarro e no meu café um cheiro  Entrevejo, ao longe, uma saia encarnada  Traço de ti, cedo

O porquê do nome deste blog

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            Míchkin é a personagem principal do romance O Idiota de Dostoiévski. Não consegui parar de o ler. Nunca mais o reli, infelizmente. Ando a adiá-lo há muito tempo porque o ofereci e nunca mais o voltei a comprar. Li aquele calhamaço em dois dias. Dia, noite e madrugada. Não parei. Míchkin  tem muitas ideias e acredita nelas piamente. O problema é que ele não olha a quem as diz. Diz com a mesma ingenuidade o que lhe vai na alma ao carniceiro como diz aos seus amores.       Míchkin não deixou descendência. Daí o título. Somos nós a sua prole. Somos filhos de Míchkin. Vimos dessa linhagem dos que dizem o que lhes vai na alma. E sofremos com isso, sim. Mas dizemo-lo porque não há como não o dizer. Porque é de nós.